À Mesa

É o sol que viaja entre a terra mansa e a terra brava. Terra que se deixa dominar e terra que se quer desbravar. Terra dócil e fecunda, terra que se aprende a amar na conquista do leirão ou do lameiro. Do alto das serranias, vai descendo o Mondego, engrossando o caudal fazendo a ponte entre a Terra Brava e a Terra Mansa. O Beirão que acompanha o Mondego reconhece, nessa viagem, que na alimentação não existem fronteiras e por isso os sabores apurados lentamente nas cozinhas viajaram desde sempre entre uma Beira que, de um lado, é amparada pela serra e que de outro se encosta ao mar. E a beleza foi sempre essa. Por isso, era com redobrado entusiasmo que o Beirão ia buscar, levar e trazer os sabores daqui e d’acolá.
Comunicar a nossa gastronomia é muito importante. Mais, saber comunicar a nossa gastronomia é fundamental, sobretudo, neste momento em que, nos principais centros urbanos, se sente por parte dos turistas uma busca pelas tradições alimentares como espelho de identidades maiores.
Na valorização da nossa gastronomia, há que descobrir as histórias que são um pedaço da vida de cada comunidade e dar-lhes vida trazendo-as para a mesa. A narrativa faz-se com as pessoas, paisagens e rituais. Temos tudo, vamos lá deixar que elas se desenhem, saltem do prato e nos encantem?
Casamenteiro, milagreiro dos problemas de ossos, cravos e verrugas. A São Gonçalo tudo se oferecia e se oferece parecendo que se quer alimentar o Santinho que acode nas desgraças e desventuras íntimas. E já que o Santo não come, come o povo que a fome, sobretudo, no Inverno ainda parece mais forte e mais negra. Ora digam lá que o povo não sabe o que faz… na próxima falo de outro santo guloso!
Não tenho dúvida de que este Inverno irá mudar as nossas vidas. Não me parece que tudo vá passar com o mesmo conforto que tivemos na primeira fase. Nem as pessoas querem deixar de viver, nem as pessoas podem deixar de viver.
A doçaria, tal como a gastronomia, não é anónima. Ainda que pareça que não tem rosto, nome ou personalidade, é na força silenciosa de um saber, repetido vezes sem conta até à perfeição, que está o famigerado segredo. O ruído do protagonismo nem sempre deixa ver isso. Não é a presença de açúcar que faz um doce, mas o equilíbrio e a mestria em o usar. Segredo, nem por isso. Magia pura feita por mãos de mulheres.
O sorriso, falta o sorriso. Talvez tenhamos de aprender a sorrir com o olhar. E ao mesmo tempo, perceber que os direitos de cada um não podem apagar o bem-estar e a felicidade dos povos. O pretenso avanço das sociedades modernas com a sacralização dos direitos individuais não deve contrariar séculos e séculos de cooperação humana.
Os sorrisos, o brilho nos olhos, a agitação das mãos e o avivar da memória das mães e das avós que “nunca deixavam passar os dias de festa sem aquele comerzinho melhorado” deixou-me com a certeza de que temos uma dívida para com o Guisado. E as Beiras sabem disso, a festa do povo beirão é no guisado que encontra o seu final feliz. Vamos celebrar o Guisado Beirão?
Para além dos “santuários” da boa cozinha regional que sabemos existirem e que satisfazem a nossa gula e acalmam as nossas depressões gastronómicas, às vezes sinto um vazio. Sobretudo em algumas cidades. Às vezes, é difícil conseguir uma boa referência para aconselhar amigos ou para uma boa noite de conversa à volta dos pratos e da conversa.
Neste tempo que convida a olhar a cozinha como companhia e as panelas como abrigo da nossa inspiração, lembrei-me de como as receitas inundam as redes sociais. Queremos que na nossa cozinha e sala de jantar esteja o mundo todo, o mundo que nos acolhe e com o qual vamos partilhando as dores e alegrias dos nossos dias.
Ao Sabor de Portugal