Escrevi quase uma centena de artigos e nunca falei do doce da minha terra, o pastel de Tentúgal. Agora que iniciamos um novo ciclo lembrei-me que, para celebrar, talvez fosse o momento ideal de falar deste doce tesouro do Baixo Mondego. Não quero ir pelos motivos mais óbvios, pelo que todos dizem. Para mim, o pastel é pessoal e intransmissível. Não no sabor ou na receita, mas na memória, no aconchego da minha infância. O pastel tem para mim sabor a mãe e por isso é tão pessoal, tão impossível de transmitir.
Nasci entre farinha e doce de ovos. Na correria do imenso trabalho que este doce exigia e exige, era um privilégio os momentos de conversa com a minha mãe enquanto ela “armava” os palitos ou meias-luas. Os meus dias eram passados entre a cozinha grande e a casa da massa. Ainda pequenita, tenho recordação de um dia ter levantado uma das bordas de um bolo para me esconder no imenso mar de massa transparente que a minha mãe tinha acabado de esticar. O cheiro ficou comigo até hoje e eu sinto que, muito mais do que o doce de ovos, é a mistura entre água e farinha que me vem a memória sempre que lembro do pastel. Ficou em mim como uma concha segura.
Mas cresci e procurei o fio. Quis sempre perceber o caminho. E pelo meio encontrei histórias e histórias, tantas como as folhas que a massa dá. E são histórias de mulheres valentes. Algumas são faladas, até registadas em livros, contos ou poesias. Outras vivem no anonimato de um passado que nem sempre foi doce para elas. Guardo-as todas no silêncio do meu pensamento e penso como sou feliz por as ter. Sempre achei que, em relação ao pastel, vivíamos o circunstancialismo do aqui e agora como se fosse irreversível o degrau em que nos encontramos. Uma espécie de limbo para o pastel como se a história dependesse de nós.
Não depende, na verdade. O pastel tem vida, há muitos séculos que segue um caminho e assim vai continuar. Por isso, quando me lembro de todas essas histórias de mulheres que guardo comigo penso como somos só mesmo um patamar, nem talvez isso, provavelmente, só um degrau. Todos contribuímos para o caminho que o Pastel de Tentúgal segue, mas não depende de nós.
É verdade, sim o pastel é uma história que se conta no feminino. Das irmãs às criadas, da primeira geração de pasteleiras após o encerramento do Convento, às que lhe seguiram, às de hoje. São muitas as vivências. E, curiosamente, aprendo com todas elas. Percebo a inexorabilidade do tempo e como o amor e o sofrimento, a dádiva e a partilha, o segredo e a magia, sempre foram reféns da passagem dos anos, das mudanças da vida. Cada mulher, cada história é uma lição de vida. E Tentúgal, às vezes, esquece-se disso.
A doçaria, tal como a gastronomia, não é anónima. Ainda que pareça que não tem rosto, nome ou personalidade, é na força silenciosa de um saber, repetido vezes sem conta até à perfeição, que está o famigerado segredo. O ruído do protagonismo nem sempre deixa ver isso. Não é a presença de açúcar que faz um doce, mas o equilíbrio e a mestria em o usar. Segredo, nem por isso. Magia pura feita por mãos de mulheres.
O nosso pastel é maior que nós. Tal como para mim, porventura, terá aquele sabor materno com cheiro a farinha e água para muitos outros e outras. Devíamos celebrar as mulheres de Tentúgal e lembrar que a sua doçura se conta nas folhas de massa em ponto de véu. São elas as heroínas de uma história que não se reduz apenas a ovos e açúcar, mas que tem a alquimia que só mãos mágicas podem fazer.