Somos o que comemos e o que comemos é o que encontramos na natureza. Desde a origem da humanidade somos condicionados na nossa alimentação pelos recursos que encontramos no nosso ambiente mais próximo. Se a fome não é opção, mas imposição biológica, na busca pela abundância o nosso gosto é moldado pelo território quase até ao limite. Serão a fome ou a abundância filhas da geografia para além de consequência e causa de valores sociais e culturais. Nos tempos mais longínquos, antes do significado simbólico cultural e social, o homem penou na conquista da abundância e fê-lo à custa, ora da escassez, ora da pujança do que ia encontrando no seu caminho, em redor do seu habitat. Por isso a viagem alimentar da humanidade é feita de migrações, de movimentos no território, pois satisfazer o estômago implicava ganhar tempo à exigente e injusta sazonalidade dos produtos. Nestas andanças pelo território, foram os povos cruzando-se uns com os outros levando com eles o conhecimento, as sementes, os animais, as plantas, em suma, o património alimentar que hoje, apesar de mundializado, permite ainda observar resistências, perfeitos tesouros desconhecidos da gastronomia.
A viagem alimentar não se fez apenas com o constrangimento do território, a geografia apesar de sempre presente, muitas vezes foi vencida pela atribuição de valores culturais e sociais aos alimentos, às técnicas alimentares, às receitas. Porque sempre presente no quotidiano dos indivíduos, desde o nascimento até à morte, desde os momentos de trabalho até à festa, a alimentação afirmou-se como elemento imprescindível na definição de identidade das comunidades. Não só revela, por um lado, as opções tomadas na interpretação e reinvenção da natureza de forma a satisfazer a necessidade básica da fome, como a alimentação se transforma em símbolo social e cultural. De simples princípio condutor das opções alimentares, o gosto dominante ergue-se como o modelo que determina os produtos, as técnicas culinárias, as receitas e até o modo como se come. No diálogo constante entre a tradição e a inovação, o gosto submete a alimentação ao que é tido como padrões a seguir e que fazem a base de uma identidade alimentar.
Consciente de que alimentação é o resultado de um diálogo constante entre a cultura, os padrões sociais e o território parece-nos um desafio adequado para este trabalho de investigação perceber a importância de todas estas dimensões na descoberta ou emergência do conceito de Gastronomia Portuguesa. Serão, por isso, aquelas premissas teóricas tidas em conta e desenvolvidas no início deste trabalho de investigação recorrendo, para tal, a várias obras relacionadas com a história, antropologia e sociologia da alimentação.
Na verdade, muito em voga pela sua transversalidade, a alimentação é hoje considerada de grande importância quer pela sua capacidade de dinamização da economia, quer pela renovação agrícola que pode proporcionar, quer pela necessidade de optar por um estilo de vida saudável, quer ainda pelo seu caráter cultural que envolve um conjunto patrimonial fundamental para a preservação da identidade. Neste contexto, nunca tanto como hoje se falou de Gastronomia Portuguesa sendo esta um conceito pronto a socorrer qualquer discussão. No entanto, impõe-se perceber: de que falamos quando falamos de gastronomia portuguesa? Na busca para a resposta desta questão julgamos ser de grande utilidade os raciocínios já desenvolvidos a propósito de outros exemplos da gastronomia europeia. E parece-nos, sobretudo, importante discutir e analisar o que integra o conceito de gastronomia para depois percebermos o que integra a gastronomia portuguesa. Neste contexto, serão os conceitos e gastronomia, produtos, artes culinárias e cozinhas devidamente analisados.
Em todos estes conceitos, o de cozinha parece-nos ser bastante útil na definição de Gastronomia Portuguesa e, por isso, será mais desenvolvido, sobretudo, porque nos transpõe para uma dimensão que queremos explorar, o território. As cozinhas que integram o conceito gastronomia são territoriais, mas até que ponto o são? No diálogo entre a territorialização das cozinhas e a sua dimensão regional é necessário refletir e integrar o que são as experiências noutros países europeus. Mais do que um somatório de produtos e receitas territoriais, as cozinhas territoriais devem incluir uma matriz identitária que faz com que se distinga facilmente de outras que apresentam caraterísticas diferentes. Tal conceção irá obrigar-nos a um estudo apurado do que foram as causas e as consequências da afirmação das cozinhas regionais percebendo o impacto da globalização, da patrimonialização da gastronomia e valorização de identidades alimentares múltiplas que situam o indivíduo nos diversos contextos em que aquele vive e se move.
Todo este caminho nos irá levar a uma das questões fundamentais deste trabalho de investigação, perceber a importância das cozinhas regionais na afirmação da gastronomia portuguesa analisando, simultaneamente, o conteúdo das mesmas. Na verdade, consideramos útil afirmar o caráter construído da gastronomia portuguesa como uma súmula de acrescentos e reduções motivados pela mobilidade dos povos e para tal analisámos o modo como se construiu a ideia de cozinha nacional e qual a influência do território e da geografia.
Nesta busca simultânea do caráter da gastronomia portuguesa e da presença e influência das cozinhas regionais para o todo alimentar de Portugal iremos em busca de informação a fontes distintas. Em análise estarão as publicações de culinária de Domingos Rodrigues, A Arte de Cozinha (1680), de Lucas Rigaud, O Cozinheiro Moderno (1780), de João da Mata, a Arte de Cozinha (1876), de Carlos Bento da Maia, Tratado de Cozinha e Copa (1904), de Olleboma, Culinária Portuguesa (1936). Com interesse no receituário, nas artes culinárias e nos produtos utilizados estamos convictos de que esta análise nos dirá bastante acerca do conteúdo do conceito de gastronomia e da sua institucionalização.
Teremos em conta, ainda de que forma ligeira dada a quantidade de publicações literárias, a literatura de Camilo Castelo Branco e Eça de Queiroz. A crítica social e gastronómica também será suporte de análise com Fialho de Almeida e Albino Forjaz de Sampaio. Neste âmbito, interessa-nos, sobretudo, perceber como era a cozinha nacional e as cozinhas regionais entendidas para além do universo dos interessados nas publicações de culinária. Bastante conhecidas e divulgadas as afirmações que Fialho de Almeida faz nas suas crónicas na publicação Gatos, importa perceber a sua importância na afirmação daquilo que este autor entendia como cozinha nacional. Por outro lado, sendo que Camilo Castelo Branco e Eça de Queiroz chegavam ao grande público com a sua literatura e que nesta ofereciam ao leitor várias descrições dos quotidianos alimentares das suas personagens rurais, citadinas, provincianas cremos serem os seus livros boas fontes para perceber do significado de gastronomia portuguesa num tempo em que o gosto alimentar era imposto por regras vindas de França, considerada capital europeia do bom gosto e de uma cozinha moderna sem os constrangimentos dos séculos anteriores.
Como fonte usaremos, também, os registos das Exposições Agrícolas, Industriais e Comerciais realizadas em grande escala na segunda metade do século XIX já que nos parecem excelentes registos do que, à época, era considerado como especialidades locais no sentido de produtos cuja singularidade e reputação estão associadas ao território que os viu nascer. Somente os produtos de excelência eram levados para as várias exposições regionais, nacionais ou internacionais. Por isso, acreditamos que conhecer quais os foram os considerados e até premiados nos dará um excelente retrato do nosso Portugal Gastronómico do século XIX. Simultaneamente, através da análise dos produtos enunciados nestas exposições sentiremos o prenúncio da dimensão territorial da alimentação em Portugal. Por fim, numa referência breve iremos analisar o conteúdo dos Guias de Turismo publicados até 1947 de forma a perceber qual a importância das cozinhas regionais como elementos de atração à atividade turística.
Certos da quantidade de referências às especialidades locais nas fontes acima referidas, queremos ir mais longe e perceber se tal é prova das dimensões territoriais da alimentação. Na certeza de que esta não é uma reflexão simples, percebemos que, para além das fontes já citadas, teremos de procurar outros suportes que nos permitam tirar conclusões baseadas na realidade portuguesa. Nasce, assim, a vontade de elaborar uma cartografia gastronómica que nos diga acerca das tendências e padrões alimentares e acrescentem informação ao que é o conhecimento da gastronomia portuguesa.
Mapas Gastronómicos
Na certeza do conhecimento que nos dará, a nossa cartografia gastronómica será dedicada ao grande tema do pão pela preponderância que este tem na alimentação dos portugueses, resultado do legado deixado pelos romanos. A grandeza da informação, quer na qualidade, quer na quantidade obriga-nos a distribuí-la por 6 Mapas: Mapa 1 – Bolas, Pães, Broas e Folares Salgados; Mapa 2 – Pães doces; Mapa 3 – Doces e Papas Doces; Mapa 4 – Açordas e Migas; Mapa 5 – Papas Salgadas e Sopas; Mapa 6 – Acompanhamentos, Caldeiradas, Ensopados, Pratos.
Tendo em conta a influência atlântica na alimentação dos portugueses será elaborado o Mapa dos Peixes pescados na costa portuguesa com o objetivo de saber o que se pesca na nossa costa, qual a preponderância de pescas das espécies ao longo da costa e como tal pode ou não ser coincidente com o que se conhece do receituário nacional. A versão continental da gastronomia portuguesa é, nesta cartografia, assegurada pelo Mapa das Raça Autóctones que nos irá mostrar a distribuição daquelas pelo território nacional. Por último, o Mapa das especialidades locais aqui consideradas como produtos de terroir pela sua ligação profunda e reciprocidade de reputação com o território muito nos dirão sobre a importância dos territórios na alimentação.
Cartografia gastronómica distribuída pelos nove mapas já referidos será sempre comparada com os Mapas elaborados por Amorim Girão no seu Atlas de Portugal. Ainda que com que informação e métodos de elaboração diferentes, estamos na expetativa de perceber quais as semelhanças, quais as diferenças entre ambas expressões de cartografia alimentar. No intuito de encontrar padrões que permitam tirar conclusões quanto à expressão regional da nossa alimentação, esta será uma viagem pelo nosso Portugal Gastronómico tão cheio de recantos e tesouros alimentares. Será, com toda certeza, uma viagem de descoberta ao centro do que nos carateriza e identifica, pois gastronomia é território, mas é sobretudo cultura.
Esta cartografia gastronómica será a base de trabalho para a análise da importância das cozinhas regionais no conjunto da gastronomia portuguesa, tema central que atravessa todo este trabalho e que faz a ligação entre cultura, gosto e território, no entanto, estamos certos de que o carácter pedagógico da mesma será a que irá permitir que este trabalho tenha valido a pena pelo que irá acrescentar no conhecimento da gastronomia portuguesa e no aumento da literacia alimentar dos portugueses.