À Mesa – Santos Gulosos: S. Gonçalo

Ainda presos à melancolia própria de quem deixa as festas familiares ao calor da lareira e entra a fundo num Inverno rigoroso e na rotina de trabalho, nem nos apercebemos como é fértil este Janeiro em celebrações coletivas. Para mim, é o mês dos Santos gulosos. São Gonçalo de Amarante, Santo muito popular nas romarias a Norte e que recebe o diminutivo amoroso de São Gonçalinho de Aveiro é celebrado a 10 de Janeiro e é muito guloso…

Em Aveiro, como prova da imensa devoção que os aveirenses lhe têm e das graças recebidas, são-lhe oferecidas toneladas de Cavacas que são depois atiradas do cimo da Capela e apanhadas pelos devotos. Uma espécie de troca simbólica entre quem recebe a graça pedida ao Santo e depois o alimenta, alimentando o povo. Esta distribuição de Cavacas fez-se, assim, ritual para corrigir os imensos desequilíbrios sociais com os mais abastados a darem aos mais castigados pela falta de alimento.

Santo milagreiro, a sua especialidade recai nos problemas dos ossos e nas dificuldades em casar. Tal não é esquecido na Dança dos Mancos que decorre dentro da Capela de São Gonçalinho e em que se canta: São Gonçalo de lá de cima; é das velhas curraleiras; o Santo de cá de baixo; é das novas pescadeiras…”. São, por isso, conhecidas e muito propagadas as graças casamenteiras concedidas por este Santo. Mas se em Aveiro somente as cantorias remetem para tal, lá para Amarante o caso toma outras proporções.

Motivo de brincadeira para uns, de espanto para outros, os chamados Falos de São Gonçalo ou Testículos de São Gonçalo (dito assim de forma suave para não ferir suscetibilidades…) mostram de forma explícita a angústia do homem e da mulher em relação a uma questão imprescindível na continuidade da espécie: a fertilidade. Porque para além da fome não havia nada pior que a infertilidade (sendo a culpa, habitualmente, da mulher pois claro…), os de Amarante não se furtam a mostrar as razões para adorarem São Gonçalo e, por isso, demonstram-no nos bolos feitos em forma de pénis que de pequeno nada têm.

Esta expressão de motivos fálicos e explicitamente sexuais na alimentação não é exclusivo de Amarante e estes Falos de São Gonçalo apenas revelam o empenho na continuidade da espécie, na preservação da família e a dificuldade em encarar a vergonha de não ser capaz de gerar filhos. Havia lá coisa pior que não conseguir cumprir o motivo para o qual o casamento era pensado? Vergonha para o homem, culpa atirada para a mulher, era motivo para ir à Igreja de São Gonçalo e arduamente pedir a graça da fertilidade. Digo arduamente, porque às vezes, para convencer o santo era preciso levantar a saia ou arrear as calças e mostrar ao santo o que não se mostrava a mais ninguém.

Mas atentos, não deixemos resvalar a nossa atenção para a piada do ilícito e do profano que toda esta história contém! Há mais para descobrir no culto a São Gonçalo. Em S. Paio de Vizela (local onde foi pároco), é costume fazer um cortejo com tremoços e vinho que no final são partilhados por todos. Já na Murtosa (Bunheiro), era tradição as raparigas levarem para as novenas uma pada (pão de trigo de grande fama por aqueles lados) com dois cravos espetados. Atrás ia uma outra com um “penico” de papas à cabeça seguida de um rapaz que, ao ombro, levava um ramo de oliveira que servia de transporte a uma chouriça e uma cabaça de vinho. Depois da oração, era altura de comer e em partilha que assim sabia melhor.

Casamenteiro, milagreiro dos problemas de ossos, cravos e verrugas. A São Gonçalo tudo se oferecia e se oferece parecendo que se quer alimentar o Santinho que acode nas desgraças e desventuras íntimas. E já que o Santo não come, come o povo que a fome, sobretudo, no Inverno ainda parece mais forte e mais negra. Ora digam lá que o povo não sabe o que faz… na próxima falo de outro santo guloso!  



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