Com o cunho da herança mediterrânica dominava o pão enquanto alimento base de uma alimentação que o via também como alimento sagrado. Por isso, o pão estava presente no imaginário alimentar, quer como alimento do corpo, quer como alimento do espírito, sendo objeto de completa reverência. Pela predominância na mesa medieval, sobretudo, na mais popular, o pão assumia caraterísticas dependente do cereal de que era feito e do qual havia mais disponibilidade.
No Sul, uma geografia (mais plana, com maior exposição solar) mais favorável permitia a produção de trigo em conjunto com a cevada ficando o centeio reservado para os terrenos mais pobres. “Nos terrenos mais áridos e frios da Estrela, por toda a Beira Interior a norte da Gardunha, pelas serranias transmontanas e pelos cabeços e colinas minhotos, onde as terras mais frias e húmidas ou inóspitas se mostravam mais avessas à produção do exigente cereal nobre, então era o centeio a revestir as maiores superfícies da seara, mas ainda assim, o trigo não se ausentava por completo, a ocupar os terrenos mais fundos, abrigados ou quentes.[1] O Minho, as Beiras e a estremadura recebiam a produção do milho miúdo (ou alvo) e painço.
Se o pão, na diversidade possível permitida pela geografia, dominava a mesa, quer dos ricos, quer dos pobres, a sua presença fazia-se de acordo com princípios sociais e culturais. Assim, à mesa dos ricos sobressaía o pão alvo feito da flor da farinha de trigo vastas vezes peneirada em peneiras de seda retirando, assim, as impurezas ao cereal acabado de moer. Já à mesa dos pobres comia-se pão escuro sendo a tom reflexo, ora de menor acesso à farinha de trigo e à predominância de outros cereais menos nobres como o centeio e a cevada, ora de farinha de trigo menos peneirada, ou seja, com mais farelo. Para além das diferenças sociais, culturais e geográficas traduzidas nos tipos de pão e no acesso a este bem, importa relevar a sua presença na mesa dos portugueses desde sempre.
A acompanhar o pão, os mais pobres usavam os caldos feitos com os legumes e, em dias especiais, enriquecidos com um naco de carne da salgadeira ou do fumeiro ou com algum animal de capoeira. A abundância de legumes utilizados nestes caldos ficava a dever-se a eles serem cultivados nas hortas mesmo à beira das casas, espaço de cultivo feito zona franca não sujeito a tributo ou imposto. “Era já bem longa a lista das espécies que a horta medieval acolhia. A maior parte herdada de Roma, mas algumas vindas e outras paragens e, neste caso, há que fazer referência ao contributo que o Andalus trouxe a todo o Ocidente.
Todavia, as plantas mais significativas eram agricultadas entre nós desde há vários séculos: por um lado, as favas, as ervilhas, o grão-de-bico, os tremoços, as lentilhas, os chícharos, por outro as couves (…) entre as quais as inflorescentes, a couve-flor e os brócolos, (…), mas também os alhos, as cebolas, os nabos, as alfaces, as cenouras, as beringelas, os rábanos, os espinafres e tantas outras verduras”[2]. Tudo cozinhado na panela fumegante no brasido da lareira da casa, faziam-se os caldos onde se molhava o pão, sendo este o suporte para levar à boca os magros bocados de carne que enriqueciam ou não o caldo.
Também os caldos eram engrossados com farinha de milho miúdo e painço ou de centeio transformando-se em papas aquecendo os estômagos nos dias de Inverno e dando energia a quem tinha de usar muita força física no trabalho. Importa reforçar que o pão ou a farinha que lhe dava origem era parte integrante ou, por vezes, principal de algumas receitas como as sopas, as açordas, as migas, os cuzcus, os milhos. Ou seja, quer o pão, quer os diversos tipos de cereal foram, desde sempre, presença assídua no receituário português sendo, num período anterior à batata, o modo principal de dar energia física.[3]
Em períodos de maior carestia recorria-se à castanha, à fava, à bolota e à alfarroba que, depois de transformadas em farinha, eram usadas para fazer pão. Em Trás-os-Montes era a castanha que salvava da fome na ausência de cereais. No Algarve socorria-se à alfarroba e no Alentejo fazia-se da bolota um sucedâneo do cereal. Tal demonstra que, na falta de cereal, o homem procurava sucedâneos para a panificação. Assim, em vez de procurar alternativas ao pão, mantém a matriz deste alimento e socorre-se de produtos alternativos aos cereais para fazer o alimento sagrado.
[1] GONÇALVES, Iria, “A Alimentação” in História da Vida Privada em Portugal, A Idade Média, MATTOSO, José (coord), Círculo de Leitores, 2010, pp. 227 e 228
[2] GONÇALVES, Iria, “A Alimentação” in História da Vida Privada em Portugal, A Idade Média, MATTOSO, José (coord), Círculo de Leitores, 2010, pp. 229
[3] BRAGA, Isabel M. R. Drumnod, “À Mesa com Grão-Vasco. Para o Estudo da Alimentação no Século XVI” in Máthesis, 16, 2007, pp. 9-59