Na demanda do que falamos quando falamos de gastronomia portuguesa será necessário expor o seu caráter construído ao longo dos séculos e não a sua descoberta ou aparecimento num tempo mítico considerado ponto zero na história da nossa alimentação. Mais do que acreditarmos que a gastronomia portuguesa que hoje é sobremaneira valorizada nasceu construída de acordo com o que consideramos tradição, importa, perceber como aquela se foi construindo no tempo de acordo com diversos fatores culturais, geográficos e sociais. Qualquer tradição gastronómica que hoje seja aceite como tal, em algum lugar, em algum momento, constituiu uma inovação que foi sendo paulatinamente assimilada, introduzida no quotidiano e aceite como natural. Assim, ao contrário do que se supõe, as tradições gastronómicas, que caraterizam a gastronomia portuguesa, têm uma origem no tempo, sendo que esta nem sempre é facilmente destacável numa qualquer influência cultural ou motivada por um qualquer fator, mas afirma-se como um conjunto de acrescentos que vão fluindo no tempo e no espaço ao sabor de influências culturais e sociais e fatores vários, algumas das vezes, até contraditórios.
Neste contexto importa referir a evolução da alimentação em Portugal, sobretudo, a partir da Alta Idade Média, momento a partir do qual, por um lado, é visível o modelo cultural que se recebe da presença romana na Península Ibérica e que se traduz numa clara influência mediterrânica, por outro lado, se percebe o encontro entre esta influência e o modelo alimentar dos povos do Norte, e por outro lado ainda, se sente a influência do modelo cultural tradicional do povo árabe que entra na Península Ibéria e aí deixa influências de grande porte que acrescentam de forma substancial o modelo alimentar.
A derrocada do Império Romano e a sua conquista pelos “bárbaros” leva ao encontro de dois modelos culturais muito diferentes. A cultura clássica muito desenvolvida na Grécia e, mais tarde, em todos os termos do Império Romano promovia o culto da trilogia alimentar fundamentada no trigo, no azeite e no vinho, produtos considerados sagrados e dignos de verdadeiro culto aos deuses respetivos. A complementar esta dieta mediterrânica teríamos os vegetais, as leguminosas, os frutos e os peixes. Este modelo alimentar com caraterísticas tão vincadas era de tal modo importante que servia de elemento distintivo para com os chamados bárbaros, ou seja, todos aqueles povos que não comungavam do modelo alimentar clássico.
“Os «verdadeiros» romanos são descritos como homens orgulhosamente ligados aos produtos da terra: os cereais, os legumes, as leguminosas e os frutos. Os bárbaros são devoradores de carne que não se interessam nada pelos alimentos vegetais.”[1] Há, assim, uma espécie de barreira cultural alimentar que diferencia os povos do mediterrânico e os povos do Norte que faz com que os alimentos privilegiados e as tradições alimentares sejam diferentes. Se uns privilegiam o pão feito do cereal trigo os outros são «comedores de carne», se uns bebiam vinho os outros bebem leite, se uns usam o azeite os outros usam a manteiga. A dieta mediterrânica tão presente na Antiguidade Clássica define-se, deste modo, por oposição ao «outro», aquele que não comunga dos mesmos princípios.
Ainda que esta oposição nunca tenha sido verdadeiramente tão esquemática, pois os romanos também comiam carne e os bárbaros também usavam o trigo, a mesma acaba por se diluir com o desmoronar do Império Romano, sobretudo, porque os «bárbaros» que acabam por dominar o Império Romano se deixam seduzir pelo modelo alimentar romano e aceitam as suas premissas. Também a afirmação do cristianismo enquanto religião oficial do império vai acentuar a importância de um modelo alimentar que valoriza e sacraliza o pão e o vinho enquanto carne sangue de Cristo, sendo que o azeite é o óleo sagrado utilizado para ungir os cristãos.
Mas a entrada na Idade Média onde os povos do Norte exibem o seu domínio também se carateriza pela inclusão da carne como produto natural de um novo modelo alimentar onde a atividade da produção de animais já não é entendida como prática bárbara, prova de ausência de civilização. Neste contexto, o porco, pela influência de tradições celtas e germânicas, ganha espaço e relevo na dieta medieval, sendo que a atividade sílvo-pastoril se integra na dinâmica da exploração do espaço florestal que, de algum modo, recebe novos atributos de vantagem.
É esta a herança que o território hoje Portugal recebe pela passagem de diversos povos e que dá o mote para a caraterização alimentar sabendo, nós, desde já, que no futuro, como no passado, far-se-á de interligação, mistura, osmose e cumplicidade entre várias influências sociais, culturais e geográficas onde teremos de incluir a cultura muçulmana. Esta em contraste absoluto com alguns dos produtos privilegiados na cultura alimentar que se afirma na Europa, nomeadamente no que respeita à carne de porco e ao vinho considerados interditos alimentares, tem uma influência grande no que se virá a desenhar como princípios da alimentação medieval. “É, contudo, certo que encontramos, na Europa cristã, numerosos aspetos da cultura alimentar islâmica ou, em todo o caso, que os árabes desempenham um papel de intermediários, ao trazer aos europeus (…) uma parte dos produtos alimentares e dos costumes da nova alimentação medieval.”[1] Pelo comércio favorecido pelos árabes intensifica-se o uso das especiarias e com a sua presença conhece-se a cana-de-açúcar, alguns vegetais novos como as beringelas e os espinafres, citrinos como o limão e a laranja-azeda e o arroz.
É nítido, portanto, que no cruzamento de todas estas influências se desenha uma cultura alimentar que se revela ser, desde muito cedo, uma soma de acrescentos fomentada, não só pela mobilidade dos povos, mas também pela vontade de ter a universalidade à mesa e interagir com produtos novos como os mercados tão bem revelam. No entanto, as influências recebidas pela miscigenação entre culturas diferentes, por vezes até opostas, não pode fazer esquecer os constrangimentos impostos pelas capacidades produtivas do espaço num tempo em que as condições financeiras da maior parte da população não permitem o acesso aos mercados. “Não obstante a capacidade de deslocação que alguns víveres mostraram ter, sobretudo a partir da Plena Idade Média, proporcionando grande volume de trocas internacionais a longa distância, o grosso dos alimentos era, como não podia deixar de ser, de origem local.”[2] Tal era muito verdade, sobretudo, para os que menos recursos tinham e estavam dependentes do poder senhorial.
[1]MONTANARI, Massimo, “Modelos Alimentares e Identidades Culturais in História da Alimentação, vol. 1, MONATANRI, Massimo; FLANDRIN, Jean-Paul (coords), Terramar, 1998, pp. 284
[2] GONÇALVES, Iria, “A Alimentação” in História da Vida Privada em Portugal, A Idade Média, MATTOSO, José (coord), Círculo de Leitores, 2010, pp. 227
[1] MONTANARI, Massimo, “Romanos, Bárbaros, Cristãos: na Alvorada da Cultural Alimentar Europeia” in História da Alimentação, vol. 1, MONATANRI, Massimo; FLANDRIN, Jean-Paul (coords), Terramar, 1998, pp. 248