Cronologia_5 – Idade Média – Mesa dos Pobres e Mesa dos Abastados

A cozinha dos citadinos não diferenciava muito da praticada pelo campesinato, ainda que com diferenças no que respeita ao acesso aos produtos, pois se os mais ricos tinham acesso a bons produtos vendidos nos mercados e podiam, assim, garantir abundância com qualidade sobre a mesa, já os mais desprovidos de rendimentos sentiam grande dificuldades a bons e diversos produtos, desde o cereal até às carnes e peixes. Por isso, os governos municipais procuravam garantir que o que era disposto para venda não procurava enganar o incauto e esfomeado consumidor. Daí existirem regras e alguma fiscalização na venda do pão, da carne e demais produtos alimentares necessários para garantir a alimentação do povo.

Também os moluscos preenchiam a mesa, quer dos mais pobres, quer dos mais ricos sendo as um elemento que poderia integrar uma ementa real. “O abastecimento em moluscos era fácil para quem vivia próximo do seu habitat: áreas abrigadas da costa, estuários de rios. Constituía desafogo para as famílias de mais modestos recursos, na medida em que eram fáceis de capturar e baratos no mercado, dada a pouca consideração com que, de uma maneira geral, eram tidas pelas populações mais abastadas.”[1]

Se até aqui nos centrámos na descrição da alimentação medieval caraterizando o que seria a mesa do pobre e do remediado, importa agora descrever a cultura alimentar dos ricos, desde logo, afortunados no acesso à maioria dos produtos. No entanto, se a mesa medieval dos menos abonados se traduzia pela utilização de produtos locais, dos produtos da horta cultivada mesmo à beira das habitações, os produtos do cultivo do terreno senhorial, das carnes permitidas não só pela predominância de espécie, mas também pela gestão difícil da maior rentabilização possível das mesmas, dos peixes mais baratos e acessíveis, quer à bolsa mais pobre, quer ao interior do país, na alimentação dos ricos é visível a fuga ao circunstancialismo geográfico e cultural dos produtos disponíveis.

Mais do que se procurar os produtos locais, privilegiam-se bens alimentares provenientes de diversas origens geográficas. Assim, na cultura alimentar dos mais ricos “(…) imperava um internacionalismo indiferente a tudo o que não fosse o apetite dos comensais. (…) Assim ocorria na cozinha, onde alguns dos ingredientes vinham de muito longe, como era o caso das especiarias com a sua longínqua proveniência oriental. Por outro lado, a grande cozinha mostrou-se decididamente internacional.”[2]

Repescamos, deste modo, as afirmações de Massimo Montanari já referidas anteriormente que evidencia que, para além do consumo de produtos locais, a tendência à mesa dos mais ricos é de procurar a diversidade de produtos e de receituário. “(…) Análises comparativas feitas aos códices medievais levaram os investigadores a concluir que a alta cozinha repetia em todo o lado, as técnicas, os ingredientes, os paladares, a forma de apresentação dos pratos e até os títulos das receitas (…). Era uma culinária praticada apenas nas mais altas esferas sociais e acessível, portanto, a uma percentagem muito restrita da população, mas em termos geográficos ela era de uma enorme abrangência.”[3]

Sendo tal uma realidade também para a realidade portuguesa, temos que perceber que a cultura alimentar seguia tendências europeias e, muito raramente, seguia particularidades geográficas e culturais exclusivas do nosso país. Assim, a culinária presente nas cozinhas das famílias abastadas era muito elaborada sendo que uma receita podia passar por várias técnicas culinárias e, usualmente, os pratos eram carregados de temperos, nomeadamente, especiarias. “Os grandes mestres da cozinha medieval dominavam com grande saber todos os processos culinários. Conheciam uma grande variedade de massas (…), confecionavam almôndegas recheadas, variavam os molhos de acompanhamento quase até à exaustão, sabiam fazer fios de ovos e distinguiam com grande saber os pontos do açúcar.”[4]

Para além da vincada elaboração das receitas praticadas nas cozinhas de casas ricas que contrastava com a simplicidade do cozido muito presente nas cozinhas dos mais pobres, os produtos utilizados seriam os melhores. O melhor cereal, o trigo que depois de moído em mós alveiras era devidamente peneirado até a farinha ficar fina e muito suave para produzir o pão alvo. A melhor carne, quer a de animais jovens (cabrito e cordeiro) e ainda de suculência tenra a animais menos acessíveis (vaca, vitela, carneiro), quer a de animais de caça como perdizes, veados, lebre, javali. O melhor peixe, os chamados de «posta» preenchiam a mesa dos mais ricos. Mas os peixes de rio forneciam em qualidade e diversidade muitas espécies de peixe, sendo que a maioria eram privilégio dos mais ricos como a lampreia.

Quanto a temperos, a cozinha medieval distinguia-se pela estrutura social. Assim, os mais pobres socorriam-se das ervas aromáticas que cresciam gratuitamente na horta, na charneca ou no prado como o louro, manjericão, tomilho, salsa, coentro, funcho, poejo, alecrim que davam sabor aos cozinhados, na sua grande maioria, cozidos. Por seu lado, a raridade das especiarias e o facto de virem de muito longe aumentava o preço tornando-as acessíveis apenas aos mais abastados. Assim, nas cozinhas nobres usava-se canela, açafrão, cravo, gengibre, pimenta, noz-moscada para temperar carnes, peixes e doces. “A alta cozinha medieval resultava assim fortemente apaladada, de sabores compósitos que podiam apresentar infinitas variantes. (…) Naturalmente, os maiores cuidados reservavam-se às especiarias, não só porque eram os condimentos de sabor e aroma mais pronunciados, mas também porque representavam o sinal distintivo das grandes mesas. Nessa medida tinham de ser escolhidas pela sua riqueza e usadas com abundância.”[5]

Após esta descrição sumária das diferenças entre as cozinhas nobre e camponesa percebemos que a estrutura social definia o gosto do nobre e do camponês. Se a primeira é elaborada, muito condimentada, complexa e excessiva no sabor e diversa nos ingredientes, a segunda é simples nos temperos que dependem do que os camponeses tinham à disposição na horta, o receituário é reduzido a cozidos, a grelhados na brasa (as carnes por altura da matança do porco e algum peixe como a sardinha), fritos em azeite (algum peixe antes passado em farinha) e alguns assados, como por exemplo, em dias de festa em que se sacrificava um animal jovem como cordeiro ou cabrito. Há uma oposição notória entre o complexo e o simples, entre o sabor natural e o transformado por inúmeras técnicas culinárias e utilização de condimentos como ervas aromáticas e especiarias.

No entanto, convém perceber que tal divisão e oposição de gosto na estrutura alimentar medieval, para além de decorrer da falta de acesso aos produtos e ao conhecimento, também deriva da condição social da mulher. Se nas cozinhas abastadas há quem se dedique a tempo inteiro à tarefa de cozinhar podendo, por isso, dedicar-se a uma arte culinária elaborada onde várias técnicas são cruzadas, nas cozinhas camponesas quem assume a tarefa de cozinhar tem muitas outras funções a desempenhar. A mulher cozinha ao mesmo tempo que desempenha muitas outras tarefas. “(…) Cozer em água e cozer nas cinzas são cozinhados lentos, suaves, que evitam acidentes e não exigem vigilância permanente. Recordam que a camponesa não é uma cozinheira a tempo inteiro. Tem de cozinhar todos os dias os alimentos para a família enquanto se entrega a outras atividades, e não pode correr o risco de os deixar queimar.[6]”   


[1] GONÇALVES, Iria, “A Alimentação” in História da Vida Privada em Portugal, A Idade Média, MATTOSO, José (coord), Círculo de Leitores, 2010, pp. 238

[2] GONÇALVES, Iria, “A Alimentação” in História da Vida Privada em Portugal, A Idade Média, MATTOSO, José (coord), Círculo de Leitores, 2010, pp. 247

[3] GONÇALVES, Iria, “A Alimentação” in História da Vida Privada em Portugal, A Idade Média, MATTOSO, José (coord), Círculo de Leitores, 2010, pp. 247 e 248

[4] GONÇALVES, Iria, “A Alimentação” in História da Vida Privada em Portugal, A Idade Média, MATTOSO, José (coord), Círculo de Leitores, 2010, pp. 250

[5] GONÇALVES, Iria, “A Alimentação” in História da Vida Privada em Portugal, A Idade Média, MATTOSO, José (coord), Círculo de Leitores, 2010, pp. 248

[6] FLANDRIN, Jean-Louis, “A Alimentação Campesina em Economia de Subsistência” in História da Alimentação, vol. 1, MONATANRI, Massimo; FLANDRIN, Jean-Paul (coords), Terramar, 2001, pp. 211

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