À Mesa com Portugal
Conta a pequena publicação árabe “Livro de uma Guerra entre o Rei Carneiro e o Rei Mel” a contenda entre dois reinos tão diferentes. Um poderoso, o do Rei Carneiro, quer o poder absoluto. Mas o Mel, na sua humildade, recebe o poder pela força dos seus súbditos que nele acreditam. São os legumes, as frutas, os doces, os peixes, o leite, que convictos da força do Mel para os governar, lhe oferecem o trono.
Nesta história como na vida, o poder seduz, embriaga e desnorteia e, por isso, a todo o custo o Rei Carneiro procura atingir o poder supremo e, corrompendo os súbditos do seu rival, consegue os seus intentos e vence o humilde Rei Mel. Para além do simbolismo inerente à conquista do poder, esta história é evidência de como o mel é ingrediente versátil e plural desde a sua descoberta na aventura alimentar do homem.
A verdade é que se, hoje, a utilização do mel é algo restrita e circunscrita a produtos e ocasiões determinadas, outrora, era ingrediente utilizado sobremaneira. Poderíamos pensar que tal teria a ver com a introdução do açúcar e a forma como este veio destronar a importância do mel enquanto adoçante favorito. Mas não.
Na verdade, muito antes de nos termos rendido ao sedutor açúcar, o mel era muito utilizado e não só como adoçante. Na Antiguidade Clássica, era ingrediente favorito para a confeção de molhos para carne, peixe, moluscos e imprescindível, em parceria com o leite, na produção do antepassado do “foie gras”, uma pasta feita com os fígados dos gansos e das porcas muito bem engordados com figos. Para além de ingrediente predileto para o agridoce, o mel era também utilizado na conservação dos frutos e da carne.
Distante destes tempos remotos, ainda sobrevivem algumas práticas culinárias em que o mel é o aspeto diferenciador como é o caso da Chouriça Doce de Vinhais onde à carne de porco se junta o azeite, o pão regional, o sangue de porco, o mel, nozes ou amêndoas. Digo eu, que já provei, que o mel faz tão boa companhia à carne e sangue de porco… Deliciosas são as morcelas de mel típicas de Amarante feitas com o tradicional Pão de Cantos (ou de Padronelo ou Ovelhinha consoante o local onde é feito) mais a amêndoa, o açúcar, o pingue e o mel.
Pelas Beiras, nas Aldeias do Xisto, local onde o mel tem reconhecidos pergaminhos, as papas de nabos são feitas em água adocicada com mel à qual é adicionada a farinha de milho. Sobrevivência plena do agridoce, estas papas eram, outrora, acompanhadas com sardinha picada pelo sal.
Bem diferenciadora é a tigelada do Pinhal Interior que, em vez de açúcar, é feita com mel e leite de cabra. Mais escura, é de sabor pronunciado e concorre para ser produto gastronómico de proa daquela zona. A verdade é que não há tigelada como aquela…
Mais a sul, no Alentejo, terra onde o pinhão tem tradição na paisagem produtiva, as distintas e singulares alcomonias sobrevivem enquanto arte deixada pela presença árabe na região. Elegantemente embrulhadas em papel colorido são um doce simples feito à base de farinha de rolão, mel e pinhão. Simplicidade a toda a prova mas que exige grande perícia na arte da doçaria.
Termino com uma receita de arroz doce que… leva mel em vez de açúcar. É do Algarve, de Estoi e prova que não há impossíveis para o Reino do Rei Mel. Este, poderá ter sido derrotado pelo Rei Carneiro, mas a verdade é que mantém uma relação duradoura, eterna e, definitivamente doce e nunca amarga com a nossa culinária e com a humanidade. Quem disse que o mel só servia para juntar ao limão quando a garganta arranha e ameaça deixar-nos sem voz? Descubram estas receitas e deliciem-se com o fantástico Rei Mel.