À mesa – Açordas

As açordas da minha vida. Aquelas que já provei e aquelas todas que ainda hei-de provar. Pelas açordas de cada pedacinho deste país, que não é só no Alentejo que elas existem. Por isso mesmo, quero falar de açordas. Quero por tudo o que disse e porque percebo que a açorda é a próxima vítima da moda da gastronomia portuguesa, uma espécie de “typique” ao contrário. O mesmo aconteceu ao bacalhau à lagareiro, às migas, ao bacalhau com broa, às caldeiradas, ao arroz de marisco e agora é a açorda que se perfila para ser estandardizada numa receita que fica bem numa ementa de um qualquer restaurante do nosso país. Emblema gastronómico nacional abunda por aí, mas na maioria dos casos, muito mal feita. 

Nascida mesmo à beira dos arrozais, habituada a ter mais um tacho de arroz do que uma açorda, um ensopado ou uma miga sobre a mesa, não sabia do encanto das açordas até as provar e de perceber que é magia o que se faz com pão, um caldo e um bom tempero. Não me esqueço do tempo que os meus amigos alentejanos passaram a tentar explicar-me como a açorda é uma coisa simples e não se confunde com outras receitas. “Então menina, faz um piso”, “um piso?” perguntei eu. “Sim, um piso com sal, coentros, alho. Por cima o azeite e o pão e só depois a água fervida. Isto é uma açorda!”. Não descansei até provar a açorda que estes meus amigos do Baixo Alentejo me tentaram ensinar. Simples e tão bom, aprendi eu.

Depois fui a cantarolar pensando que tinha descoberto o santuário das açordas. Sentia-me sábia com tão sápido ensinamento. Mas mal passei o Tejo, descobri a açorda de peixe do rio acompanhada de peixe frito. Exclamei: uma açorda? Parecem umas migas… Não menina, é uma açorda. E o melhor é que esta açorda tinha um sabor extraordinário, viciante, capaz de criar gula até naqueles que nada percebem de gastronomia. Disseram-me que era do poejo. Comi envergonhadamente o último bocado na travessa e suspirei por perceber que não iria repetir a experiência nos tempos mais próximos.

foto de Olga Cavaleiro

Pensei que tinha de descobrir as açordas no Norte. Comecei pelos receituários imperdíveis e, fascinada, dei comigo a imaginar aquelas açordas que às vezes me pareciam migas e aquelas migas que mais pareciam açordas. Não me saem da cabeça as Migas Ripadas que, nitidamente, são uma açorda e ainda não perdi a esperança de as reproduzir na minha cozinha.

Nas minhas voltas pela Beira Alta dei com uma receita que parecia saltar de um lado para o outro sempre com pequenas variações, mas com um princípio fundamental: água temperada com sal e alho para cozer o sangue do porco. Pão (de centeio) embebido nesta água, sangue esfarelado por cima e alho fervido em azeite ou banha (consoante a abundância da oliveira) a tchiar por cima daquele pão. Uma açorda pensei eu, afinal este sarrabulho é uma açorda.  

Sou uma aprendiza em relação a açordas e a migas, mas fico triste, tão triste com o que vou encontrando por aí a dizer-se de açorda! Curiosa e gulosa ganhei o hábito de experimentar açorda sempre que as cartas dos restaurantes me proporcionam. Mas, infelizmente, percebi que a maioria dos exemplares disponíveis são umas mixórdias mal-paridas feitas a partir de caldos destemperados de tanto picante que têm em que uma espécie de pão é misturado e embebido sem pudor nem respeito pela palavra açorda. Já desisti de provar.

Temo que aconteça com a açorda o mesmo que aconteceu com outros exemplares da nossa gastronomia. O uso e abuso de uma receita e do conteúdo cultural que ela encerra leva a que nem sempre o resultado seja merecedor da atribuição dada. É caso para dizer: vamos salvar a açorda? Tenho muitas ideias para isso. Até porque acredito que a gastronomia portuguesa é como a açorda, abebera e deixa-se abeberar. Mas isso, são palavras para outra conversa. Mas sim, vamos salvar a açorda. 

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