Cronologia_1 Reflexões: Dos Mitos Fundadores à Tradição

Pensar a alimentação no tempo leva-nos por uma viagem que começa lá longe, não no ponto de partida que gostamos de imaginar de forma romântica ao jeito de uma boa história, mas há muito tempo atrás com os primeiros humanos. Temos de recuar a uma dimensão cronológica difícil de reproduzir pois que a evolução humana aconteceu de tal forma rápida que nos faz entrar na ilusão de que sempre tivemos o que temos hoje.

É por isso importante recuar para um tempo primeiro onde a alimentação é reflexo de uma necessidade biológica. Parecemos recuar, deste modo, a um tempo sem tempo e a um espaço sem espaço. Não que estes sejam difíceis de situar, mas esta atitude ajuda a eliminar preconceitos e representações que temos na nossa mente pelo simples facto de que a realidade que conhecemos é a que temos mais próxima. Se esse deslizar pela linha do tempo, por um lado, nos assusta e faz-nos ter muitas dúvidas pela escassez de registos e de informações, por outro lado, dá-nos certezas com os pressupostos que descobrimos.

O predomínio e popularidade do tema da alimentação criou a tendência da procura dos mitos fundadores em relação às receitas e produtos.  Onde, como, quem, porquê e quando parecem criar o argumento que queremos à força que seja visto como a verdadeira história de uma expressão alimentar. Na verdade, a procura de tais mitos fundadores enviesa a nossa procura, faz-nos acreditar que a resposta às nossas perguntas é límpida e consistente e se constrói como uma “história”. Na maioria das vezes, conseguimos apenas relatos em forma de fábulas, argumentos que servem a necessidade de uma justificação forçada daquilo que aprendemos a ter sobre a mesa. Tal acontece porque vimos a receita ou o produto como um ponto de chegada e não como um constante ponto de partida, tendemos a fazer as perguntas erradas obtendo, apenas, fragmentos da realidade.

A verdade, é que as receitas não nascem construídas, o Queijo Serra da Estrela não nasceu Queijo Serra da estrela, nem as Tripas à Moda do Porto nasceram Tripas à Moda do Porto. Mas a arte culinária e as expressões alimentares desenharam-se ao longo do tempo, ao sabor de muitas vicissitudes. Habituados que estamos a olhar as receitas atuais como produtos finais acabados faz-nos pensar que algures no tempo alguém teve uma epifania gastronómica e deu à luz uma receita de sonho, o prato perfeito. Engano, as receitas e os produtos são feitas de camadas que se sobrepõem num encaixe perfeito e são fruto de séculos de aperfeiçoamento. Novos conhecimentos culinários, novos gostos, novos ingredientes, permitiram trazer até nós o que hoje conhecemos.

Por isso, uma receita é sempre um ponto de partida, mais do que um ponto de chegada. O Queijo Serra da Estrela foi incorporando em si um saber-fazer, uma reputação, que se foi acumulando ao longo do tempo. As Tripas à Moda do Porto começaram por ser algo completamente diferente do que temos hoje, mas só seremos capazes de compreender isso se percebermos como se desenhou a matriz alimentar portuguesa e como a mesma foi integrando, ao longo do tempo, saberes e ingredientes vindos de muitas geografias.

Olhar as receitas e os produtos como ideias que se materializam ao longo da linha do tempo em que vão recebendo acrescentos e sofrendo reduções ajuda-nos a perceber que, em cada tempo, em cada espaço, existe uma versão que vai sendo sucessivamente modificada. Não podemos, por isso, falar de receita original. Não existe a “verdadeira” receita. Original para quem? Verdadeira em que tempo? Existe a receita que tem versões condicionadas pelo tempo e pelo espaço. Numa época entram na panela determinados ingredientes e utiliza-se uma arte culinária, um século depois com a vinda de produtos de outras geografias e conhecimento de novas técnicas culinárias apuramos um gosto diferente. Existe, por isso, o gosto de uma época, de uma geografia, sendo que nenhuma das versões tem primazia sobre as outras ou apaga o que antes era comum.

Olharmos as receitas deste modo dá novo conteúdo ao conceito Tradição. Palavra tão utilizada para justificar o que conhecemos e afirmar como “verdadeira” a nossa versão, deve ser repensada e, ao invés de ser olhada como um elemento estático, devemos procurar nela o dinamismo que é tão natural na alimentação. Porque as receitas não nasceram construídas, quais estátuas perfeitas, mas antes são pedra que todos dias deixa desenhar novos gostos, a alimentação tem em si a constante mudança, na sucessiva curva e contracurva que faz mudar a aparência da receita, acrescenta ou reduz ao gosto.

A tradição não significa cristalização dos elementos, versão definitiva, mas versão que se adapta, que se modela, que se reproduz com pequenas nuances. Por isso, sempre que falamos em tradição temos de contextualizar no tempo e no espaço, pois que a verdade gastronómica de há 1000 anos atrás não era menos verdadeira que a atual. Nela se encontram muitas das linhas que hoje nos caraterizam, mas com mudanças visíveis. E se falarmos de há 10000 anos atrás mantém-se o mesmo raciocínio. Ficarmos com um pé preso na ideia confortável de tradição vai impedir-nos de fazermos as perguntas certas.

A alimentação é dinâmica, mistura épocas, geografias e é expressão visível e tangível de gostos que vão evoluindo. E é, por isso, que nos encanta, porque ainda que sejamos fiéis ao conforto do que conhecemos e sabemos gostar, perseguimos todos os dias a mudança que nos vai surpreender. A tradição reinventa-se sempre que nela inserimos um elemento inovador. Duas correntes da mesma força, a tradição e a inovação alimentam-se mutuamente. Na verdade, é a inovação que mantém a tradição viva, que lhe dá substrato, que a mantém à tona de água. Tradição que não se reinventa morre e com ela desaparecem gostos que ficaram desatualizados, que já não encontram correspondência no quotidiano das pessoas. A cristalização não acontece na alimentação, esta é feita de mudança. Perceber isso, leva-nos a conhecer a história para além dos mitos fundadores.

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